terça-feira, 2 de junho de 2015

À Conversa com... Olga Prats

Alunos da EPMVC - Muito obrigado pelo Recital de Música de Câmara “ARTE E EMIGRAÇÃO”, que nos proporcionou conjuntamente com Alejandro Erlich Oliva. Estamos também muito agradecidos pela Masterclass ministrada, onde aprendemos bastante e nos sentimos muito acarinhados. Consideramos que foram experiências muito importantes na nossa formação enquanto futuros músicos.



Iniciou os seus estudos de piano com o professor e pedagogo João Abreu e Motta aos 6 anos. Aos 13 anos (1952) - idade de muitos dos atuais alunos da EPMVC - dá o seu primeiro concerto no Teatro Municipal São Luís, em Lisboa. Quer partilhar as recordações que guarda desse dia e o que interpretou?

Olga Prats - O professor João Abreu e Motta também foi professor da minha mãe e tinha escola francesa (foi aluno de Alfred Cortot). A 5 de maio de 1952 (fez agora 63 anos) dei o meu primeiro concerto e desse dia recordo as coisas mais extraordinárias.
Recordo, por exemplo, a roupa que levava: tratava-se de um vestido de tafetá cor-de-rosa com uma fita de veludo preto na cintura. Vesti meias de crochet feitas pela minha avó e uns sapatos pretos de verniz. Tinha no cabelo uma fita de veludo preto.
Eu estava muito contente, muito satisfeita por estar assim vestida mas tinha por baixo do vestido uma saia de tafetá armada que me picava nas pernas.
Outra coisa que ainda lembro é o programa. Foi um recital enorme: era uma Suíte Francesa de Bach (com três partes) e uma Sonata de Beethoven em Fá sustenido (com dois andamentos). Depois, na segunda parte, toquei as Cenas Infantis de Schumann e, na terceira parte, uma peça de Francine Benoît (Cantares de Cá), Cubana de Manuel de Falla, o primeiro Arabesco de Debussy e a Sonatina de Bartók. Ainda toquei dois ou três extras: Schumann (penso eu), do Álbum da Juventude.
Para mim, era uma satisfação saber que o meu professor estava lá a ouvir-me e lembro-me de sair do piano e ir a correr ter com ele (esfregando as mãos de contente) e perguntar-lhe como correu. 
Lembro-me também de ter pedido à minha mãe para me fazer um prato e uma sobremesa que eu adorava e ela fez tudo o que lhe pedi. Lembro-me de tudo isso… até do sabor e do cheiro dessa refeição.
Foi uma tarde linda. Encheram-me o palco de flores e ofereceram-me chocolates. Depois do concerto eu estava numa enorme euforia.
Nunca mais esqueci as sensações do que vivi nesse dia.



Alunos da EPMVC - Sabemos que seguiu para o Conservatório e mais tarde, já a nível superior, foi para Colónia, na Alemanha. Conte-nos um pouco sobre o que viveu nessa altura e que poderá ser importante para os alunos que estão a terminar os seus estudos na EPMVC e foram admitidos em prestigiadas escolas europeias.

Olga Prats - Na altura eu tinha 18 anos e é um pouco difícil reportar-me a tantos anos atrás. Eu saí de Portugal no final de 1957, estive na Alemanha quase 4 anos. Fui para Colónia com uma Bolsa do Estado Alemão e outra do Instituto da Alta Cultura. Eram bolsas relativamente pequenas (eu não tinha muito dinheiro), mas a bolsa do Estado Alemão pagava-me o lar onde eu passei a morar e que era ótimo (só que não tinha piano) e pagava as propinas, que eram muito caras.
Além disso, tínhamos um seguro de saúde muito bom. No entanto, senti algumas dificuldades porque cada marco alemão correspondia a sete escudos e por isso eu tive de gerir muito bem o meu dinheiro.
Mas a minha maior necessidade era estudar e por isso comecei a fazer uma coisa profundamente errada: saía do lar ainda de noite, às seis da manhã, para apanhar um autocarro para chegar à Escola de Música e me pôr na fila para ter um piano para estudar e só se podia estudar duas horas em cada piano. Eu chegava a estudar oito horas por dia.
Eu não sabia como haveria de conseguir preparar todo o reportório que me era exigido e deixei de fazer as refeições convenientemente e, por isso, ao fim de três meses tinha aumentado muito de peso.
Com a ajuda da Fundação Calouste Gulbenkian, que me começou a dar um subsídio e depois uma bolsa, eu já pude alugar um piano e fazer um estudo mais regular e uma vida mais saudável. Até aí, o fim de semana, por exemplo, era para mim uma aflição por não poder estudar.




Alunos EPMVC - Para além de frequentar vários cursos internacionais, esteve nos Encontros de Música Contemporânea de Darmstadt. Poderia falar-nos um pouco sobre o ambiente vivido nesses cursos que acompanhavam e apresentavam as "novidades" da nova era musical? Como via essas vivências em relação à música portuguesa?

Olga Prats - Fui a Darmstadt conjuntamente com outros colegas da Escola de Colónia no final do terceiro semestre (ano e meio depois de chegar). Ficámos todos em quartos de particulares, eu fiquei na casa de uma família simpatiquíssima. Na altura, eu ainda não sabia falar muito bem alemão, mas já percebia o suficiente.
Decidi ir a Darmstadt por duas razões: primeiro para frequentar as aulas de Pierre Boulez e, depois, porque o Diretor da Escola de Colónia queria que eu trabalhasse com Carl Seeman e eu fui a Darmstadt para frequentar os seus cursos e tentar ser aluna dele.
Lembro-me que em Darmstadt tive aulas como nunca tinha tido: aulas de preparação corporal, ou seja, tratava-se de solfejo mas com reação corporal - uma espécie de ginástica com respiração que eu nunca tinha feito.
A outra experiência inesquecível foram as aulas de Música de Câmara porque tive a imensa sorte de conhecer um grande violoncelista espanhol chamado Gaspar Cassadó, que me convidou para a sua classe e comecei a fazer Música de Câmara. Recordo-me de, na altura, escrever em carta: “A Música de Câmara é a coisa mais maravilhosa do mundo” e o meu professor disse à minha mãe: “Pronto, perdemos um solista e ganhamos um músico”.
Eu penso que ser solista concertista é muito complicado. É muito difícil andar de mala na mão pelo mundo e muito mais naquela altura. Eu viajei bastante mas com grupos, o que é completamente diferente de andar sozinho.
Darmstadt foi para mim uma dádiva. Foi onde conheci Luigi Dallapiccola e Pierre Boulez. Anos depois esteve em Darmstadt o Jorge Peixinho.
Na verdade eu não vivia, eu “absorvia”. As classes do Robert Silverman eram muito absorventes e muito difíceis e eu aprendi muito. Encontrei lá gente que com a minha idade tocava muito melhor e eu tive de trabalhar imenso.
Na altura, eu estava cheia de esperanças de voltar a Portugal e encontrar algo não digo igual mas parecido. Mas apenas encontrei uma porta fechada.
Para conseguir fazer duos comecei a acompanhar alunos nos exames de fim de curso de violino. Só assim conseguia tocar Ludwig van Beethoven e Johannes Brahms, por exemplo, como fazia na Alemanha.
Tive a sorte enorme de conhecer François Broos, professor de viola de uma menina de 14 anos chamada Ana Bela Chaves. Na altura (em 1968), eu já tinha mais 14 anos do que ela e foi Broos que nos juntou. Comecei, assim, a trabalhar com uma pessoa extraordinária, que estudava e ainda estuda imenso (um verdadeiro vendaval), uma mulher cheia de força.
 Recordo-me que quando fui com a Ana Bela ao Concurso Internacional de Genebra, em 1977, ela ganhou o primeiro prémio de viola por unanimidade. Nunca antes tinha acontecido.
Ela estudou muito, mesmo muito para conseguir o que conseguiu e é um exemplo vivo de que tudo se consegue quando se quer.
Mais tarde, quando a Leonor Braga Santos, também violetista e aluna de François Broos, foi ao concurso de admissão à Escola Superior de Música de Colónia, quem a acompanhou fui eu. E quando Isabel Pimentel fez o concurso à Gulbenkian também orientada por François Broos, quem a acompanhou fui eu. Eu tenho seguido as suas carreiras e hoje a Isabel toca comigo no Quarteto Lopes-Graça que divulga a música portuguesa.

Alunos da EPMVC - A sua interpretação musical está representada em vários compositores, desde Fernando Lopes-Graça a Ástor Piazzola. Poderia partilhar connosco como estes compositores surgiram na sua vida?

Olga Prats - A nossa música, a música de Lopes-Graça, tem muito de nacional. Eu comecei a trabalhar com ele nos anos 60 e a primeira coisa que eu toquei dele foram os Três Velhos Fandangos Portugueses, que estão no meu primeiro disco. Depois disso, trabalhei com ele até à sua morte. Houve anos em que me tinha como única intérprete de piano. Fiz sete discos com ele.
O Piazzola surgiu na minha vida depois do Opus Ensemble nos anos 80. Este grupo de Música de Câmara, com 35 anos, foi inicialmente composto por mim, pela Ana Bela Chaves (viola), por Bruno Pizzamiglio (oboé e corne inglês) que entretanto faleceu, e por Alejandro Erlich Oliva (contrabaixo) que vocês também conheceram. A Suíte Argentina de J. L. Castiñeira de Dios está no nosso primeiro disco de 1982.
Ainda há pouco comentava com Alejandro que ele e o Bruno Pizzamiglio tinham conseguido incutir em nós portuguesas (eu e a Ana Bela) o ritmo argentino que nós portugueses também temos no fandango e nos viras. 

Alunos da EPMVC - Como figura de referência no  panorama musical português, e pelo vasto e brilhante contributo musical e artístico com que nos tem brindado, gostaríamos de lhe perguntar que balanço faz destas novas gerações, e das iniciativas que estão a emergir na atualidade?


Olga Prats - Eu tenho muita esperança nos jovens alunos das Escolas de Música e sobretudo eu tenho muita confiança no trabalho das escolas profissionais de música (mais do que no ensino superior). Isto custa-me dizer porque eu estou reformada do ensino superior: da Escola Superior de Música de Lisboa onde fundei a classe de Música de Câmara.
Eu não recuso convites das Escolas Profissionais porque é aí que eu estou a encontrar alunos e ex-alunos que estão a trabalhar muito bem.
Na Escola Profissional de Música de Viana do Castelo em particular, o trabalho é feito com o maior rigor e muito bem orientado pela vossa diretora, a professora Carla Barbosa. Graças ao seu pulso e resiliência, que lhe têm proporcionado prémios muito meritórios, desenvolve-se um trabalho que estimula professores e alunos a tratar a música com o maior rigor.
Se durante a vossa vida enquanto músicos não forem metódicos e não tiverem a música como primeira prioridade, as coisas não duram. O músico é um cientista, se não avançar, se não estiver à frente do que está a acontecer, deixa de ser músico.
Eu acredito muito em vocês porque tenho esperança que vão conseguir ter sucesso e essa esperança faz-me muito bem.
A música tem sido para mim tudo e gostava de vos passar a mensagem de que, apesar de toda a responsabilidade e de todas as dificuldades, temos de conseguir entrar no palco e ser felizes, porque se não formos felizes não faremos ninguém feliz.




Diana Esteves, Rodrigo Brito e Yekaterina Kuchinskaya
Maio 2015

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