“Prometam-me que não se vão esconder quando tocam, a música é felicidade e a felicidade não se deve esconder, mas partilhar”
Durante os dias 30 e 31 de março e 1 de abril de 2015, na Escola Profissional de Música de Viana do Castelo (EPMVC), decorreu um Curso de Aperfeiçoamento Artístico (Masterclass) de oboé. O oboísta Henrik Chaim Goldschmidt deu a seguinte entrevista ao “Folha da Música”:
1. Quando decidiu seguir uma carreira como oboísta profissional?
A minha mãe era música e toda a minha família sabia música e, quando eu era ainda muito novo, percebi que seguir uma carreira musical poderia ser algo de muito positivo para mim. Eu também não gostava de trabalhar (risos) e por isso achei que ser músico me daria uma boa vida (risos). Na verdade, gostava da ideia de acordar de manhã e poder tocar e por isso, quando tinha apenas 15 anos, fiz uma audição para entrar numa escola superior de música [Det Fynske Musikkonservatorium], onde comecei a estudar com 16 anos. Aos 19 anos consegui o meu primeiro trabalho numa pequena orquestra sinfónica dinamarquesa [Odense Symfoniorkester]. Comecei muito cedo e nunca trabalhei, apenas toquei música! (risos)
2. Lemos na sua biografia que em 2003 fundou a Orquestra da Paz no Médio Oriente que reúne músicos judeus e árabes para difundir uma importante mensagem. Que mensagem é essa?
Eu sou judeu. Durante toda a minha vida senti na pele a guerra entre Israel e a Palestina. A guerra e as mortes geram muita tristeza e eu vi na música uma oportunidade: apercebi-me que a música faz amizades. Assim, procurei e ainda hoje procuro músicos árabes com quem tocar, fazemos música juntos e depois disso deixamos de nos ver como inimigos, passamos a ser amigos.
Foi também essa a razão pela qual comecei a ensinar crianças palestinianas e israelitas a cantar. Ao cantarem juntas elas acabam por se tornar amigas. Ensino-lhes que é muito melhor estarmos juntos a fazer música do que guerrearmo-nos.
Este passo pode não fazer a diferença no mundo, mas faz a diferença nos seus e no meu pequeno mundo.
Antes de começar este projeto não tinha amigos árabes e agora tenho: comemos juntos, tocamos juntos, conhecemos as famílias uns dos outros. A música pode ajudar a construir a paz.
3. Que tipo de repertório poderá ajudar a passar essa mensagem?
Através desse projeto aprendi a tocar música árabe e ensinei música judaica. Cantamos em Hebraico e em Árabe, e assim aprendemos sobre a cultura de cada povo e aprendemos a respeitá-las porque percebemos que nenhuma cultura é superior à outra.
As mães dos israelitas e as mães dos palestinianos ficam igualmente tristes por verem os seus filhos partirem para a guerra. Eu sou pai e não quero que os meus filhos tenham de fazer a guerra, prefiro que façam amigos em vez de inimigos.
4. Algum dos últimos acontecimentos na Dinamarca relacionados com o ódio que existe entre pessoas de diferentes religiões o tocou particularmente?
Sim, muito. Os Judeus são odiados por algumas pessoas de diferentes religiões e, este ano, na Sinagoga que eu frequento, ao celebrarmos um B'nai Mitzvá (um evento de comemoração da entrada dos jovens judeus - rapazes e raparigas - na comunidade, por atingirem a maturidade) tudo terminou de forma trágica.
Depois da cerimónia, todos os convidados vão comer e dançar e há bandas a tocar. Eu estava numa festa dessas e um amigo meu estava lá fora de guarda, porque sempre sabemos que como temos muitos inimigos algo pode correr mal e há sempre quem fique a vigiar as entradas. Um árabe apareceu e alvejou-o… (silêncio) Desculpem mas custa-me muito falar sobre isto porque era muito meu amigo. Ele morreu, não porque era um criminoso, mas porque era judeu.
Não parei de tocar, toquei inclusivamente no seu funeral. Depois de passar por alguns momentos de revolta interior decidi que a única forma de ajudar a minha comunidade seria organizando uma cerimónia em sua homenagem com crianças muçulmanas, cristãs e judaicas a cantarem em conjunto para mostrar à sociedade que não queremos guerra, não queremos que isto continue a acontecer. O meu grande objetivo é usar a Música, a Arte, para fazer o bem.
Eu penso que os músicos devem tocar mesmo nos piores momentos, porque a vida também é feita de momentos tristes e a música pode ser muito importante na tristeza.
5. Tem um tipo de público favorito? Porquê?
O meu público preferido são as crianças. Toco muitos concertos para crianças de diferentes religiões: muçulmanos, cristãos, judeus, entre outras. Por vezes, nesses concertos, consigo que o público cante em uníssono e que todas as crianças partilhem o mesmo sentimento.
Não compreendo como ainda hoje há quem diga que não gosta das pessoas desta ou daquela religião, deste ou daquele país, sem efetivamente conhecerem pessoas dessa religião ou desse país. Por isso, reúno as crianças e tento passar-lhes a mensagem de que todos podemos ser boas ou más pessoas, mas não por causa da nossa religião ou nacionalidade. Ensino-lhes que devemos ser abertos a descobrir os outros, a ter amigos de todas as religiões e nacionalidades e acredito que estas crianças, quando crescerem, poderão ser melhores do que as gerações anteriores, porque são mais abertas à diferença. Vocês [jovens oboístas da EPMVC] poderão criar um mundo melhor.
6. Há algum segredo para fazer uma boa palheta? Já usou palhetas de plástico? Tem alguma preferência?
Já experimentei palhetas de plástico, mas não gosto delas porque não me permitem obter um som bonito. São mais fáceis de tocar para quem está a começar, mas eu acho que é muito melhor aprender a tocar com uma palheta de madeira que seja confortável.
Fiquei muito contente por ver que mesmo as duas alunas mais novas, que só tocam há cerca de cinco meses, não estão a usar palhetas de plástico e já estão a ter um som bonito, graças a terem bons professores e a tocarem com boas palhetas, o que também é importante.
Eu penso que o segredo para ter uma boa palheta é não a fazer demasiado resistente. Temos de ter uma palheta com que se consiga um som forte e piano, uma palheta que responda ao que queremos transmitir e que vibre. O segredo é não as fazermos demasiado resistentes para que o som venha do nosso corpo [das ressonâncias que criamos com o corpo]. O som deve vir daquilo que imaginamos, do que temos em mente e do nosso corpo. Um bom músico e uma boa palheta fazem um bom oboísta.
7. Que conselho gostaria de deixar aos alunos desta Escola que ambicionam começar uma carreira musical?
O meu conselho é muito simples e provavelmente os alunos da Escola não o vão querer ouvir: devem praticar muito. Não se pode ser músico profissional sem trabalhar muito. Eu adoro ensaiar. Pego no meu oboé e sinto prazer em tocar. Estou sempre a tentar tornar-me um músico melhor. Todas as manhãs toco em todas as escalas: 12 maiores e 12 menores. Toco-as devagar, legato, staccato. Depois toco as músicas que naquele momento me ocorrem.
Quando quero aprender uma peça, estudo-a e depois fecho a partitura e tento tocar de memória. Às vezes, trabalho muitas horas para decorar uma única peça. Mas se queremos ser músicos devemos gostar de tocar, devemos sentir prazer em tocar e com o oboé ainda é mais difícil porque nem sempre soa como nós queremos e a única forma de o fazermos soar bem é praticando. Quando gostamos do que fazemos torna-se fantástico ser músico.
O meu segundo conselho é terem um reportório próprio. Como são portugueses, aprendam músicas portuguesas, por exemplo. Assim estarão a criar a vossa própria identidade enquanto músicos. Eu sou um músico judeu e toco música judaica e canto canções em Hebraico. Como vivo na Dinamarca, também aprendi a tocar música dinamarquesa. Se me convidam para tocar música dinamarquesa eu aceito: ao piano, com o oboé ou o clarinete, ou mesmo cantando, toco para idosos, para crianças.
Eu sou um músico de formação erudita que tem a sorte de tocar numa orquestra sinfónica, mas gosto de tocar todo o tipo de música. Eu toco em festas para as pessoas dançarem e em casamentos. Sou muito aberto, não toco apenas um tipo de música e penso que um verdadeiro músico deve ser assim, deve diversificar: aprender piano, percussão, aprender a cantar.
Sempre que me junto com outros músicos é isso que faço. Tirar prazer da música e de estar com outros músicos é uma ótima forma de viver. Prometam-me que não se vão esconder quando tocam, a música é felicidade e a felicidade não se deve esconder, mas partilhar.
Relembra-se que Henrik Chaim Goldschmidt é oboísta principal da Orquestra Real da Dinamarca, em Copenhaga. Estudou na Karajan Accademy em Berlin e tem tocado a solo em algumas das mais prestigiadas orquestras do mundo, entre as quais a Filarmónica de Berlim.
As suas gravações para a EMI enquanto músico solista são reconhecidas internacionalmente, e Goldschmidt recebeu um Grammy em 1993, pela melhor gravação de música erudita. O oboísta tem conquistado vários prémios e distinções pelo seu trabalho de excelência e por unir povos desavindos através da Arte. Segundo o próprio: “A Música é um lugar de encontro e uma plataforma a partir da qual se pode criar amizade e tolerância”. É membro honorário da União Musical Dinamarquesa.
Em 2003, Goldschmidt fundou a Orquestra da Paz no Médio Oriente, onde músicos de renome internacional se reúnem para tocar música de cariz tradicional do Médio Oriente.
Enquanto compositor, Goldschmidt renovou a tradição da música judaica, escrevendo para a sua orquestra, para o cinema e para o teatro.
Mónica Pires (2CISP), Joana Nina Martins e Bárbara Gomes (3CISP), alunas de oboé da EPMVC