O dia começou cedo. Não estava psicologicamente preparada para acordar e ver ainda o negro da noite. Lá fora, a chuva ameaçava cair. Era a chamada “chuva molha parvos” e, se só os parvos molha, então eu tomo-me como tal, pois, depois do meu corpo ter decidido levantar-se do calor dos meus lençóis, dos meus braços me terem arranjado para sair e de eu ter abandonado a velha carrinha do meu pai, a chuva molhava e bem!
Entrei no autocarro. Senti-me solitária, ao ver que ainda poucos corpos tinham chegado. Vinham devagar, sem pressa de chegar. As minhas pálpebras chamavam uma pela outra, o meu corpo reconfortava-se cada vez mais no banco; era acolchoado, senti-o logo que me recostei.
Finalmente chegaram todos. O dia deles devia já ir bem mais avançado do que o meu, o mundo era deles e gargalhadas não faltavam. A professora fez a chamada e, de seguida, adormeci. Adormeci e acordei várias vezes durante a viagem; virei-me ainda mais; os meus membros tinham ainda mais sono do que eu, pois estavam sempre a ficar adormecidos.
Ao fim de algum tempo, o autocarro parou numa estação de serviço. Tomei uma meia de leite. O meu interior estava ainda demasiado gelado e o leite quente ia ajudar a aquecê-lo. Houve quem se deliciasse com gelados como se fossem quatro horas da tarde. Na dúvida, ainda olhei para o relógio; mas não, efetivamente, o meu fuso horário estava correto!
O ar puro ainda mal tinha entrado nos meus pulmões e já era hora de voltar a entrar no autocarro. O ar estava quente, abafado e o sono chamou de novo. Na verdade, só despertei definitivamente quinze minutos antes de chegar a Mafra. Nesse momento, comecei a ficar ansiosa.
O convento era megalómano, nada que não estivesse à espera. D. João V sempre gostou de dar nas vistas e numa coisa pequena ninguém ia reparar. Inicialmente, o convento deveria ser para treze frades; mas, depois de pouca discussão, lá se fez um convento para trezentos.
Entrámos e, no jardim frontal, deparámo-nos com umas aves de rapina. Todos ficaram entusiasmados e as aves, num tom de troça, exibiam-nos a sua beleza.
Seguimos para assistir à peça de teatro. Primeiramente, visualizámos uma parte numa sala grande onde as personagens passavam por entre os nossos corpos. Esta interação com o público fez-me sentir parte integrante da história. Seguidamente, levaram-nos para uma outra sala onde as minhas pernas puderam descansar. Começou o verdadeiro teatro.
Nunca tinha lido Memorial do Convento. A professora de Português já tinha espicaçado a minha curiosidade, ao ler na aula alguns excertos da obra. Porém, no fim da peça, desejei assaz ler este livro.
Terminado o encanto, a minha barriga foi a primeira a ter a noção da realidade. Fomos então almoçar. Nessa altura, instalou-se a confusão. Enquanto uns gritavam “Eu não tenho batatas”, outros reclamavam “Eu não pedi isto”, outros ainda resmungavam “Tenho sede”. Por fim, com mais ou menos esforço, todos tiveram direito a saciar a bicha solitária que habita dentro dos seus corpos.
Depois do almoço, voltámos ao convento. Assistimos a um momento musical proporcionado pelo quarteto de trombones da Escola Profissional de Música de Viana do Castelo que, vestido à época, deliciou os presentes. Nesse momento, começámos deveras por nos aperceber da grandiosidade do edifício. Ficámos com uma guia divertida e bem humorada que nos deu a conhecer a história do edifício.
Este foi construído em virtude da rainha, D. Maria Ana de Áustria, não conseguir engravidar, embora já estivesse há dois anos em Portugal. Certo dia, quando D. João V fazia a faustosa caminhada até ao quarto da rainha para praticar a função, foi interrompido pelo Bispo Inquisidor que vinha acompanhado de um franciscano que lhe disse que, se o rei mandasse construir um convento de franciscanos em Mafra, Deus lhe daria sucessão. Nesse momento, o rei prometeu que, se a rainha lhe desse um filho, no prazo de um ano, erigiria um convento de franciscanos em Mafra. Na verdade, D. Maria Ana teve não um filho mas uma filha, a infanta D. Maria Bárbara. Todavia, o rei cumpriu a promessa e mandou construir o convento.
De seguida, visitámos a igreja que o rei chegou a desejar que fosse como a Basílica de São Pedro. Posto isto, fomos conhecer os aposentos do rei. As pernas da cama eram patas de leão e esta era quadrangular, pois, na época, julgava-se que ao dormirem deitados (posição de morte) a alma poderia ser levada por engano. Deste modo, dormiam sentados, reconfortados em almofadas.
Seguimos pelo grande corredor até aos aposentos da rainha. Passámos pela sala de caça, onde nos deparámos com vários animais embalsamados nas paredes e chifres a tomar o lugar de cadeirões; pela sala de música onde pudemos ver um clavicórdio e pela sala de jogo onde comprovámos que muitos dos jogos de hoje já existiam naquele tempo.
Quando chegámos ao quarto da rainha, a guia partilhou connosco uma curiosidade pouco fragrante – à época só tomavam banho quando nasciam, quando casavam e quando morriam, pois acreditavam que tomar banho lhes retirava as defesas.
A hora de voltar para casa aproximava-se e a minha vontade de ficar lá a viver acentuava-se cada vez mais. Ainda houve tempo para ver o universo de livros antigos que existe naquela enorme biblioteca. Não sei se preferia não a ter visto, pois foi como levar uma criança a uma loja de doces e dizer-lhe que não pode comer nenhum. E não pude! Não me deixaram saborear nem uma palavrinha!
Depois de uma grande luta para abandonar a biblioteca, voltámos para o autocarro rumo a casa. Na verdade, só queria voltar e ficar a viver entre toda aquela sabedoria e ostentação.
Bem lá no fundo, acredito que nasci na época errada.
Diana Esteves